domingo, 6 de agosto de 2017

LUANA DAS ENCRUZILHADAS


 

Taiasmin Ohnmacht

 

Quando todos se foram, ficou a avó. Ficou, não; Luana das Encruzilhadas ficou. Sem escolhas, para avó e neta.

            Sentada à mesa, olhava a cozinha muito limpa; piso, mesa e pia. E a avó que ia e vinha ao redor do fogão. Cheiro de limpeza e de comida, mas Luana não tinha fome, quase nunca tinha.

            A mulher do conselho tutelar falou com sua avó, era a segunda vez. Na primeira vez, a avó se recusou a ficar com eles, a mãe disse que estaria sempre por perto, e o pai, desaparecido, assim permaneceu. A mãe foi a única que mentiu. E bons anos se seguiram. Luana das Encruzilhadas e os irmãos, fim de infância, início de adolescência.

            A avó falava e falava enquanto cozinhava, sempre falava demais, era muito ruído para Luana, fervura, fritura, metal raspando, metal batendo. Luana queria os irmãos, a casa em que viveram, a família que conhecera, a bagunça que era só deles. Queria o meio-fio onde ela e seus dois irmãos sentaram ao se darem conta de que a casa estava vazia e assim ficaria se eles não entrassem nela, e que ninguém os chamaria para dentro.

            Foi na encruzilhada que Luana tomou o primeiro gole. Em uma aposta com a criançada da rua, ela e seus irmãos pegaram a cachaça do santo, sem qualquer hesitação, só não pegaram a comida porque os cachorros chegaram antes.

            Pouco a pouco todos foram partindo, o irmão do meio morto em um assalto, o mais velho, de muda para a casa dos pais da namorada grávida, julgou que a casa das encruzilhadas não era bom lugar para criar filhos.

            Luana vagou por um tempo, becos, ruas, avenidas. Até se trancar em casa com muitas garrafas e a certeza de que tinha tudo o que era preciso. Não havia mais irmãos, não havia mais família.

            Os vizinhos que se mobilizaram anos antes e ajudaram as crianças com comida, não faltaram mais essa vez, mesmo acostumados com o caos da casa da esquina, ver Luana das Encruzilhadas fechando todos os caminhos com seu miúdo corpo ébrio caído, foi demais. Procuraram a mãe, os familiares, o Estado.

Sobrou Luana e as encruzilhadas. E a avó.

            Agora tudo o que Luana queria era apagar um pouco. Sua avó serviu-lhe o almoço, mas a menina apenas deslocava a comida de um lado para o outro enquanto se perguntava se não haveria algo para beber naquela casa tão limpa. Álcool, é claro! O cheiro de limpeza da casa era de pano com álcool.

            Levantou-se da mesa e começou a revirar os armários da avó.

─ A comida aqui é simples, não tem outra coisa.

            Luana não escutou, continuou revirando os armários, procurando álcool de limpeza.

─ Está procurando o quê, menina?

            Alimentos, panelas, pratos.

─ Senta e vem comer.

            Potes com arroz, feijão, açúcar. Saleiro, macarrão, café. Então, Luana escutou:

─ O mesmo desassossego do teu pai.

            Encontrou o vinagre de álcool. Pegou-o e olhou para a avó que lhe devolvia o olhar enquanto mastigava.

─ Eu não fiz salada, amanhã faço. O teu pai também gostava. Senta aqui, vamos almoçar.

            Luana sentou, derramou muito vinagre no prato e, por fim, comeu.