sexta-feira, 15 de abril de 2016

TRAÇOS




Taiasmin Ohnmacht

Visto tua roupa
Ganho teus traços
Moldo meu corpo e meu abraço
E o que importa é o vazio de tua forma
Onde me encaixo.

terça-feira, 12 de abril de 2016

POST MORTEM




Taiasmin Ohnmacht





Todos os dias ele calçava um sapato social preto. Nem sempre era o mesmo, tinha seis pares iguais. Gostava de usar calças sociais e não imaginava outro sapato que combinasse melhor com elas.

            Edgar tinha estilo. O mesmo, sempre. Camisas claras, calças escuras e sapatos pretos. Era um homem cuidadoso, previdente. Não se importava que alguns o chamassem de previsível. Assim ele era e ponto! A bem da verdade, tinha pouca sorte com as mulheres, mas a maioria dos homens que conhecia tinham menos sucesso com o elas do que gostavam de confessar.

            Diariamente, Edgar acordava na mesma hora, tomava banho na mesma hora, lia jornal na mesma hora, enquanto seu intestino funcionava, sempre no mesmo horário. Chegava ao cartório às oito horas, pontualmente, e deliciava-se em cumprir sua rotina de conferir, carimbar e assinar. Às vezes, carimbar, conferir e assinar. Na mesa ao lado, Patrícia. Ruiva, sorridente e simpática com todos. Edgar tinha dúvidas se ela conferia alguma coisa. A julgar pelo número de vezes que levantava, sentava e conversava com os colegas, ele suspeitava que ela arriscava-se a apenas carimbar e assinar. No entanto, nada comentava. Não era do tipo de se intrometer na vida dos outros. O problema é que a vida dos outros costumava intrometer-se na dele.

            O dia começou igual a todos os outros até Edgar chegar ao trabalho. Estranhou grande parte dos colegas reunidos ao redor da máquina de café. O clima pesado era óbvio.

- Tu não soube, Edgar? A mãe da Zuleika morreu.

            Zuleika, a moça da limpeza. Pobre Zuleika, pensou.

- A gente tá fazendo uma vaquinha para ajudar no enterro. Sabe como é, momento difícil...

            Pobre mesmo! Edgar pensou na indignidade da situação. A mãe morre e a filha ainda tem que se endividar para o enterro. Existe coisa pior?

- A família até conseguiu um jazigo, o problema são os serviços funerários.

            Edgar sentiu um frio na barriga. Há muitos anos pagava mensalmente um jazigo eterno, mas nunca havia pensado nos serviços funerários. Como deixou esse detalhe passar? A morte pode chegar a qualquer momento, não deveria estar desprevenido. Edgar abriu a carteira, tirou a maior nota que tinha como sincera contribuição e foi para sua mesa trabalhar. Na hora do almoço, enfrentou o calor de fevereiro com sua calça preta e o sapato social. No restaurante de sempre, Patrícia e outros dois colegas o encontraram já no meio da refeição. Edgar não teve outra opção senão convidá-los a sentarem. Ele gostava de almoçar sozinho com seus pensamentos. Comer era uma atividade de suma importância para o bom funcionamento da saúde e fazia questão de prestar atenção nas cores que comia e na ordem que elas eram conduzidas ao seu aparelho digestivo, mas naquele dia não teve jeito, foi obrigado a escutar Patrícia. Animada, falava sem parar sobre os vários bailes de carnaval aos quais iria na praia, durante o feriado. Edgar nunca teve interesse por carnaval, gostava de Patrícia, mas tinha assuntos mais importantes para resolver.

            Naquela semana, visitou várias funerárias. Descobriu modelos de caixão inusitados, com madeiras entalhadas e cetins deslumbrantes. Ouviu explicações interessantíssimas sobre maquiagem pós morte, na qual, enfim, a pessoa encontrava a sua melhor aparência. Em alguns casos, melhor do que jamais tivera em vida! Edgar começava a pensar até na possibilidade de frequentar alguns velórios para pegar dicas e recomendações de funerárias. Isso, até entrar na funerária Encontro Certo. Lá foi recebido por uma vendedora tão lúgubre quanto o negócio com o qual trabalhava. Toda de preto e pálida, escutou as perguntas de Edgar com respeitoso silêncio. Abriu uma gaveta com movimentos quase cerimoniais. De lá, tirou um álbum com capa forrada de veludo roxo.

- O senhor veio ao lugar certo. Olhe estas fotos e verás que o nosso trabalho é de pura arte.

            Edgar abriu o álbum também com alguma cerimônia. Seu coração bateu forte. Homens, mulheres, velhos e jovens, até algumas crianças. Todos pálidos, olhos fechados, rostos perfeitos, mas inertes. A morte dominava a cena em todas as fotos.

            Ele saiu zonzo da funerária. Era final da tarde de sexta, a cidade estava esvaziando rumo às festas de Momo. Edgar chegou cedo em casa e descalçou os sapatos pretos. Andou por um tempo no apartamento sem saber o que fazer com tantos dias de folga pela frente. Até que não teve mais dúvidas. No armário, pegou uma mala, não tinha muitas roupas para botar, teria que comprar algumas pelo caminho. Iria de chinelo de dedo. Pegou o carro e foi para a praia.