terça-feira, 10 de novembro de 2015

DOIS DEDOS DE WHISKY E MUITO GELO

 
(Teatro)
 

 

 
Taiasmin Ohnmacht
 
 
Personagens
Mirela: mulher atraente de 40 anos, nervosa e carente.
José: homem de 60 anos, aparência desleixada, barrigudo, agressivo.
Paulo: homem de 40 e poucos anos, solteiro, colega de trabalho de Mirela.
 
Cena 1
Mirela e José.
Sala de estar, meia-luz. Balcão, sofá de três lugares, televisão, bolsa sobre o balcão. Mirela e José estão lado a lado no sofá, entre eles, um pequeno espaço. Assistem futebol na tv. Mirela veste roupas simples e tem uma aparência mal cuidada. José está de camiseta e cueca samba-canção.
José: Vem cá, mulher! Não fica distante assim, não! Junta aqui, meu chicletinho querido. A gente foi feito pra ficar sempre juntinho.
            Mirela, contrariada, olha para José e fica bem próxima dele, que passa o braço por trás dela. Eles ficam um pouco assim, até que José começa a olhar para ela e para a tv, avaliando o interesse de Mirela pelas imagens do jogo.
José: Tu vai ficar assim, mulher? Pensa que pode ficar olhando as pernas e bundas desses jogadores? Mas tu é uma vadia, mesmo! Pode ir na cozinha preparar a janta e lembra: estou sempre ligado em ti!
            Mirela levanta em silêncio, mas demonstra nervosismo, sai de cena enquanto José coça o saco e se espalha no sofá, olhando ao jogo.
            Alguns segundos depois, Mirela retorna e arruma a mesa colocando pratos e talhres. Chama José para jantar. Os dois se sentam à mesa.
José: Quando tu vai pedir demissão?
Mirela (espantada): eu não vou pedir demissão! Eu gosto do meu trabalho.
José: Sei. Tu gosta é de ficar desfilando pro teu chefe.
Mirela: Eu já te falei mais de mil vezes que a minha relação com o Paulo é apenas profissional. Trabalhamos na mesma empresa, só isso.
            Depois de alguns minutos de silêncio ela completa:
Mirela: E eu gosto do meu trabalho.
            José faz uma careta ao escutar isso.
José: O que tu tem que te convencer, Mirela, é que nunca vai encontrar homem melhor que eu. Eu cuido de ti, mostro pra ti como as coisas devem ser e ainda te trato como uma princesa. Ninguém vai te amar mais que eu.
            Mirela faz uma careta ao escutar isso.
            José levanta.
Mirela: Não vai acabar de comer?
José: Não, perdi a fome só de olhar pra cara dessa comida. A gente ganharia mais se tu fizesse um curso de culinária em vez de trabalhar fora. Vou dormir.
            Ao passar pelo balcão, José para em frente a bolsa de Mirela.
José: Ainda não olhei a tua bolsa hoje.
            Mirela fica tensa.
José: Quando for deitar leva junto pra eu dar uma olhada.
            José sai de cena.
Mirela acaba de comer, retira os pratos, alguns talheres permanecem na mesa, incluindo uma faca. Ela vai para o sofá, se deita confortavelmente, pega o controle remoto e, com prazer começa a assistir um programa, assim que ela se acomoda, escuta José, de fora da cena:
José: Vem deitar, Mirela! Estou te esperando.
Mirela: Vai dormir, homem!
José: Vem deitar, que eu não tô conseguindo dormir.
Mirela (brava): Tu não dorme com os meus olhos! Me deixa em paz!
            Alguns segundos de silêncio:
José: Não me faz te buscar aí, Lembra da última vez? Melhor tu vir com tuas próprias pernas. E vem rápido que precisamos dormir cedo. Amanhã vou contigo assinar tua demissão.
            Mirela treme de nervosa, desliga a tv e se levanta. Suas feições estão visivelmente alteradas.
Mirela (com um tom de voz alterado): Já vou, amor!
Mirela olha pela sala. Vai até a mesa, pega uma faca de cozinha e a empunha. Pensa e larga a faca na mesa. Anda até o balcão pega um copo e uma garrafa de whisky, leva para a mesa e, tremendo enche o copo com o líquido.
Mirela: Já estou indo, amor! Vou levar um whiskinho pra relaxar.
            De fora de cena se escuta uma risada prazerosa.
José (animado): hoje vai ter festa! Que noite!
            Mirela mexe em sua bolsa e tira um pequeno frasco, segura ele com força entre suas mãos, expressa alguma dúvida, mas por fim, despeja o conteúdo dentro do copo. Pega o copo e leva para José.
Mirela: Claro que vai ter festa! Essa e em todas as próximas noites...
            Mirela sai de cena.
            De fora da cena se escuta o diálogo:
José: Eu estava precisando desse trago. Mas, engraçado, tem um gostinho meio estranho.
Mirela: Bebe, amor. É whisky antigo, nem um autêntico escocês reclamaria.
            Barulho de vidro espatifando no chão.
 
Cena 2
 
Mirela e Paulo.
Mirela linda, muito arrumada e sedutora. Paulo bem arrumado, veste roupas joviais e descontraídas.
 
            Sala de estar de Mirela. Muito iluminada. Em cima do balcão um vaso tipo urna, com uma tampa e um pequeno rádio.
Mirela sozinha na sala.
Mirela: Ah, ele vem! Paulo vem! Eu amo esse homem! E se ele vem é porque também gostou de mim! Depois de tanto tempo só suspirando por ele no escritório...
            Mirela para surpresa como quem escuta um barulho inesperado.
Mirela: Preciso parar com isso! Eu sou uma mulher livre! José me deixou porque quis! Ele se foi!
            Ela suspira e parece mais calma.
Mirela: O Paulo vai chegar daqui a pouco, agora eu sou do Paulo, preciso me acalmar.
            Mirela olha para o balcão, vai até ele, abre e tira um copo e uma garrafa de whisky, serve a bebida no copo o coloca ao lado do vaso.
            Toca a campainha, Mirela sorri e sai de cena. Ela retorna em seguida aos beijos e amassos com Paulo.
Mirela: Só um pouco, Paulo! Espera!
Paulo: Esperar o quê, Mirela? Cansei de esperar por isso! Eu te quero muito, não aguento mais ficar só te olhando lá no escritório. Eu pensei que nunca fosse conseguir me aproximar de ti, te desejo desde quando tu ainda era casada.
Mirela: Não! Eu te pedi pra não falar nele.
Paulo: Como assim? Tu não me disse que ele te deixou? Vai me dizer que ainda quer ele de volta?
Mirela: Deus me livre! Aquele homem era um demônio na minha vida. Vigiava todos os meus passos. Não me deixava viver, me afastou da família e amigos, dormia com um olho aberto e outro fechado, achava que eu me levantava no meio da noite pra me encontrar com outros homens.
Paulo se aproxima de Mirela, bota a mão delicadamente nos lábios dela, pedindo silêncio e a beija.
Paulo: Então, Mirela, vamos esquecer ele, vamos pensar na gente.
            Mirela se afasta novamente e se senta no sofá.
Mirela: Ah, não dá pra ser assim. Quem sabe a gente conversa um pouco antes.
            Paulo anda pela sala, para ao lado do balcão, pega o copo, cheira e toma um gole. Mirela olha espantada.
Paulo (entediado): Tá, tu quer falar sobre o quê? Economia, política?
Mirela: Respeito.
Paulo: Eu tô brincando, Mirela! Claro que eu sei que tu é uma mulher inteligente.
Mirela (fala se referindo ao copo): Respeito com as coisas dos outros. Não pode ir pegando assim.
Paulo olha para o copo em sua mão e faz pouco caso. Deixa o copo em cima do balcão de novo e abraça Mirela.
Paulo: Não pode? E tu? Eu posso pegar? Esse teus lábios, esse teu corpinho que me deixa louco!
            Mirela ri e os dois se beijam apaixonadamente até ela se assustar com algo, Paulo não consegue entender.
Mirela: Tu ouviu isso?
Paulo: O quê? Não escutei nada.
            Ela caminha tensa pela sala e para perto do balcão.
Paulo: Relaxa, Mirela. Até parece virgem! Pensei que depois de ter passado por um casamento, tu fosse mais quente.
Mirela (começa a frase com ênfase e termina desanimada): Tu está me chamando de fria? Pois saiba que eu deixava o José tão louco que ele nunca mais me deixou em paz...
Paulo: Desculpa, eu não quis dizer isso, esqueci que as mulheres são cheias de mimimi.
Mirela (séria): Tu não me conhece! Agora vou te mostrar quem realmente sou! Quer tal streptease?
            Paulo fica muito animado, comemora e se joga confortavelmente no sofá.
            Mirela anda até ao balcão para ligar o rádio. Hesita, olha para Paulo.
Mirela: Dá pra apagar a luz?
Paulo: Como assim, Mirela? Streptease no escuro?
Mirela: Já sei!
            Mirela pega um pano e cobre o vaso na cômoda.
Paulo: O que tem aí? Tu te separou mesmo? O que tu tem com esse vaso? O que tem aí dentro?
            Mirela está assutada.
Paulo: O teu ex te vigia? Ele colocou um microfone aí? Câmaras pra te vigiar?
            Paulo levanta determinado e vai em direção do vaso, Mirela tenta oferecer obstáculo com o próprio corpo, mas Paulo consegue puxar o pano e derrubar o vaso que cai esparramando cinzas no chão. Mirela grita e se abaixa desesperada tentando recolher as cinzas.
Mirela: José!
            Ela olha para Paulo.
Mirela: O que tu fez com o José? Ele me atormentava, mas não merecia ficar todo espalhado assim!
Paulo: José? Isso é o José? Ele morreu? Tu guarda as cinzas dele?
Mirela: Tu vai ser morto se não for embora daqui agora mesmo!
            Paulo sai gritando.
Paulo: Louca! Louca!
Mirela se abaixa e começa pateticamente a juntar as cinzas de José.
Mirela (chorando): José, não te preocupa, eu vou te arrumar direitinho. Bem que tu disse, José, que eu nunca iria encontrar alguém como tu. Calma, querido, vou te colocar no lugar. Não te preocupa, amanhã vou servir um whisky temperado pro Paulo, não te preocupa, meu bem, ele vai ter o que merece.
Mirela (de repente para de chorar): Dá pra, pelo menos, fechar os olhos?
Apagam-se as luzes.

 

 

 
 


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