domingo, 31 de agosto de 2014

EXÉQUIAS



Taiasmin Ohnmacht 

O dia amanheceu pleno de morte em uma manhã cansada e conformada com o passar das horas.
Nos olhos dela a perplexidade de uma atriz que foi abandonada no desenrolar de sua tragédia.
Sentimentos? Que sentimento? Alívio? Ódio? Dor? Tudo e nada num imenso vazio. Os sentidos desmoronavam.

Em uma lentidão de hesitação e medo, se arrumou para ver, pela última vez, aquele que dominava a palavra.
No caixão, mudo, repousava o personagem com quem tantas batalhas havia travado.
Ele não poderia mais atingi-la, mas também acabava qualquer esperança de paz.
O tecido da morte é mais leve que o do ódio, mas é definitivo.
Pai,

Morreste.

Tão só me deixaste,

Tão grande é o silêncio...

Entre nós, palavras suspensas,

Agora inúteis – missiva perdida.

É para sempre, pai.

Qual foi o teu problema?

Qual foi o meu erro?

Perguntas condenadas ao monólogo.

Não sei se vivo responderias,

Mas morto, resta a certeza.

De uma dúvida que nunca cessa.

Pai, eu esperei

Era apenas um olhar,

Talvez alguma palavra,

Mas um olhar resolveria

Um olhar me reconheceria

Tornaria consistente meu mundo.

Tu morreste, pai

Mas eu já estou morta,

No limbo do amor que deixaste

Em suspenso.

A manhã ensolarada ocultava o sol em luto.
E por que não comemorar o fim?
Agora ele estava ali, inerte. Ela poderia xingá-lo, cuspir-lhe na cara, humilhá-lo. Ele estava ali, finado.
Enfim, era um ser humano e, como tal, fora vencido pelo tempo.
Mas, como um diabo, ainda podia atormentar lhe a alma.

De repente, a morte

De traidora de uma esperança

À traidora de um desejo

É preciso fugir do açoite

Um crime foi cometido

Em pensamento e intenção

Um crime foi cometido

Na vitória, a punição.

Vítima e algoz

Se reconhecem em seus papéis

E entre o corpo exposto

E o olhar atônito

Há um anel de morte

Que circula e ata.

Fios que ligam o presente ao passado, feixes nervosos atualizam a dor, eletricidade e estática entre a boca e o ouvido. 

Em meu corpo a angústia

dos homens dessa terra,

Para acalmar a ebulição

De sangue conhecido,

Os homens afogam a culpa na seguinte reza:

“3 ave-marias e 1 Deus me livre

E corre daqui guria sem-vergonha,

Que o diabo é o teu corpo,

E antes que ele desperte

Será quebrado, para que

Minha lucidez se preserve”.

Em meu corpo o cálice

Do prazer da culpa.

Em meu corpo a barbárie

E o necessário exorcismo.

Em meu corpo a barbárie

E a necessária exumação

Dos mortos que carrego.

E o epitáfio? Qual seria? O que diria? Como fazer a pedra falar mais do que si mesma e rir por toda a eternidade?

Somos homens

E a tudo queremos.

Somos homens

E tudo sabemos.

Lógica,

Concreto,

Exatidão,

Os caminhos de ir e vir.

Todos os dias salvar o cú do chefe,

Do colega zombeteiro,

Do amigo traiçoeiro.

Ser homem!

Honrar as calças!

Afinal, o mundo é uma selva!

Já dizia Napoleão III

- Quem???-

Viva ao homem

Que todos os dias

Vive em perfeita harmonia!

Camaradagem é com ele mesmo!

Só se ferra quando entra mulher no meio,

Mas é penitente porque Deus

Do alto de seu poder fálico

O abençoa no campo ou no asfalto.

Escutar palavras do morto como quem escuta lixo humano, voltar o ódio às entranhas apodrecidas e olhar com prazer o cimento que sela o seu destino.

Pai nosso

Estás no céu?

Sabes que não sou santa

Nem vou santificar o teu nome

Sou apenas humana

Condenada ao erro e ao desejo

Filha de tua carne

E de teu reino.

A vontade a ser satisfeita é a minha

Tanto na terra quanto no céu

Lutando pelo pão e pelo amor de cada dia

Eu tenho muitas ofensas para rezar

Ao pé de tua lápide fria

E nenhum perdão em meu coração.

Agora

A minha carne está

Consagrada às tentações:

Livrei-me de teu mal.

Que a lápide seja peso suficiente para calar a voz desencarnada, que junto com a carne também apodreça a diabólica culpa daquela que crê ser o ódio quase ação. E que o carcereiro morto não a acompanhe, não há mais espaço para grilhões.

E que assim seja.

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