quarta-feira, 12 de julho de 2017

TUDO O QUE HÁ PARA SABER






Taiasmin Ohnmacht

 

O corpo todo dolorido. Depois de três meses ele entendeu; há dores que não passam, mas talvez já soubesse disso.

            As coisas aconteceram, não escolheu, não provocou, mas foi obrigado a colocar um ponto final.

            Paulo olhou as paredes manchadas, restos de reboco e ferros aparentes. Sentado no chão frio e irregular, se viu com a caixa de cimento e a trolha reparando um mundo que desmoronava.

            Cheiro de mofo e suor. Era difícil dormir. Ao começar a adormecer, olhos e a boca carregados de maquiagem surgiam a sua frente. Então acordava e praguejava contra aquela mulher que o torturara. Se pudesse a mataria de novo.

            Uma única vez sonhou com o corpo forte do rapaz, os dois riam de alguma piada em um sonho reconfortante. Acordou assustado, como se os outros sete companheiros da cela soubessem de seus pesadelos. E todos dormiam, e todos sabiam. As dores no corpo voltaram a incomodar.

            No caminho para o pátio, Paulo olhava com indiferença os corredores e os funcionários armados. Ao ser atingido pela intensa luminosidade do espaço entre as galerias, lembrou a última vez que percorreu o caminho de volta do trabalho, com o martelo na mão e ódio suficiente para as dezenove marteladas desferidas na cabeça daquela bruxa. O fraco sol de inverno era incapaz de diminuir o frio em seu corpo.

            Naquele ambiente, ele se sentia exilado do mundo humano, mas também pensava que já vivia em exílio muito tempo antes, controlando olhares e desejos e sentindo o risco constante de ser humilhado. Temor concretizado com a chegada daquela mulher.

Um conjunto de cartas, copas e espadas. Ele conhecia canastra, mas não aquele jogo. Dependia dela e de suas palavras. Não sabia por que fora procurá-la. Todos no bairro falavam de seus poderes. Que poderes ela teria para ele? Já na primeira vez ficou impressionado. Em meio a baforadas de charuto ela falou de seu isolamento, de sua solidão, sem que ele precisasse dizer qualquer palavra. Saiu de lá sentindo ter-se encontrado.

Na cela, Paulo evitava olhar para os outros presos. Não que isso evitasse as surras. Às vezes, evitava as curras. Mas nada o fazia esquecer o rapaz que haviam colocado como seu ajudante na obra. Última lembrança de vida que tinha; os dois compartilhando trabalho, interesses e sexo, em um encontro inédito para ele.

A vida continuou dividida, mas um pouco mais fácil ou mais interessante. Até aquela feiticeira resolver destruí-lo. Em seu itinerário de ida e volta do trabalho ela sempre estava no portão, no início um sorriso enigmático. Um dia o convidou a entrar, falou que ele estava carregado, precisava de um passe. Depois as cartas. Paulo olhou para a boca vermelha e ouviu:

- Você tem uma pessoa especial em sua vida. Um rapaz jovem, moreno...negro.

            Quem havia contado para ela? Aquela mulher era o demônio? Só podia ser uma vaca de uma cigana, uma macumbeira! Confuso, disse que tinha um filho, todos no bairro sabiam que ele tinha um filho. Era perfeitamente crível que o rapaz especial fosse seu filho. Foi embora apressado. Com o passar das horas se acalmou. Pura coincidência. Ela não tinha como saber.

            Paulo lembrou o dia em que chegou preso. Todos sabiam. Ele não fazia ideia de como isso era possível, mas no presídio todos sabiam. A diferença era que ele não se importava mais.

            No início, a macumbeira foi sutil, apenas um pequeno sorriso. Depois, uma frase fora de contexto:

- A tua mulher não te dá o que tu gosta, né? - e deu uma gargalhada de vagabunda.

            Paulo mudou o caminho que fazia para não passar em frente da casa dela, mas moravam na mesma rua, nem sempre era possível evitá-la. Na maior parte das vezes ela não falava nada, o mais comum era um olhar zombeteiro. Apesar disso, vivia tenso, como um condenado a uma desgraça iminente.

- Tu não vem mais aqui? Eu tenho mais algumas coisas pra te dizer. Algumas até acho que tu ia gostar.

Não parou, tentando passar rápido em seu caminho para o trabalho, mas ela continuou:

- Que pressa! Acho que este trabalho está te sugando demais. Tenho que ir lá ver em quem tu tá trabalhando.

            Não suportava mais o deboche e a risada diabólica, mas a partir de então escutou algo mais, uma ameaça. Trabalhou o dia inteiro. Quase não falou com o rapaz. No final do dia, saiu da obra carregando o martelo.

            Paulo olhava as paredes cheias de bolor enquanto uma nova imagem surgia em sua mente. No interlúdio entre os gritos e o próprio choro, nas sessões de terror que vivia, imaginava-se com uma marreta nas paredes decrépitas que o continham.

 


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