sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

CIRCULAR



Taiasmin Ohnmacht

de tudo o que tinha. Tiro. Frames confusos. Tiro. Grito até encontrar o silêncio premente. Pré-mente. Conta a ti mesmo e eu mentirei quantos tu és. Quantos és tem a palavra buscapé? Sem mente, corre no chão, sem mente, zigue-zagueando, sem mente, para, estoura, enterra. Cresce carcomido o adeus que te dei, árvores tronchas de galhos a se fingirem dedos. Devo dizer, de galhos a se fingirem pelos. Devo dizer, devo dizer, devo dizer. Ponto. Restam folhas de alface para fazer. Pronto. Prato feito, primeiro minuto. Tiro o sal de minha carne. Tiro o sal

domingo, 17 de dezembro de 2017

TEIAS TRILHAS NEGRAS


Taiasmin Ohnmacht
(Profundamente tocada pela dinâmica do sarau negro Sopapo Poético e livremente inspirada pelo poema Gritaram-me Negra, de Victória Santa Cruz)
Criança que voava a rua

Sentindo o cheiro de terra

Grama e calçada


Um dia caí

─ Você não é negra,

É queimadinha do sol.


E caí

Não no chão

(meus joelhos já estavam acostumados)

Caí em uma teia grudenta

De sorridentes ilusões


Minha mãe é negra

Pensei

Eu também

Só um pouco mais clara

Isso importa?


Importa!, disse o coro

E quanto mais clara, melhor


À clara

Prefiro a gema

E se gemo com o prazer do sol

A deitar-se em minha pele

Não é para justificar minha cor


Sou negra!

Assim como minha mãe

E minha avó


Diga que é o sol

E tudo fica mais fácil

Seu nariz não é de negro

Diga que é morena

E terá o sol por culpado


Saboreio a palavra morena

Promessa de delícias

Mas não sou morena

Sou negra!

Assim como a minha mãe

E minha avó antes dela


Mas, de repente

Não encontro mais sabor

Em minha cor

Nem no verde das folhas

Dos galhos que subo

E a terra úmida

Não me oferece mais encontro


Não estou mais no mundo


Busco minha mãe

Peço que ela confirme

Minha presença negra

Mas não estou mais no mundo

E seu olhar é apenas promessa

Não cumprida.


Tenho anos

Muitos anos em uma teia

Que embaraça meus cabelos

E minha visão

Embaraça meu corpo

Em formas que desconheço

Não me reconheço

Esqueci o olhar de minha mãe

E as teias não me dizem quem sou


Mas se não sou

Posso inventar-me

Romper fios

Mudar a posição dos nós

Conexões inesperadas

Surpreender olhares

Fazer novas costuras com meus cabelos

Criar novos espelhos

E nos fios rearranjados da teia

Reencontrar minha pele

Negra a brilhar

À luz do sol

O nariz largo de minha mãe

A brincar com o meu

Em beijinhos de esquimós

E os meus cabelos altos

Em busca de liberdade


Negra

Negra

Negra

sábado, 4 de novembro de 2017

CAMINHOS



Taiasmin Ohnmacht
 
 
 


Olhou para o céu e viu uma estrela cadente. Não havia pedidos a serem feitos. Lembrou o jornal da noite anterior. Vários meteoros se aproximariam da terra. O mundo segue seu próprio script, não se interessa pelos dramas humanos.

Precisava andar até o carro e o ar da noite era congelante, mesmo tão bem agasalhada sentia a aragem cortar suas bochechas. Lembrou-se do quarto quente que acabara de deixar. Queria voltar, queria partir. Já sentia saudade do cheiro dela em seu corpo. Tomou um banho quente antes de deixar o apartamento e o sabonete roubou-lhe os restos da paixão. Se retornasse, a encontraria disposta a amá-la mais uma vez? Nada disso interessava, pois tinha outro destino, mesmo sabendo que o único olhar que importa é o de desejo.

            Arrancou o carro com a determinação dos que não pensam, seguindo apenas o caminho já traçado. Não havia arrependimentos, nem pelo quarto deixado, nem pela estrada escolhida, só a vaga sensação de que a vida é mais complexa do que lhe ensinaram um dia.

            Abriu a porta para a acolhida de seu lar. Os filhos pequenos a receberam em festa. Com um no colo e o outro segurando sua perna, foi até a sala e cumprimentou seu marido com o beijo rápido dos conviventes de longa data.

- Eu fiz janta. Comeu fora ou aqueço a comida?

domingo, 6 de agosto de 2017

LUANA DAS ENCRUZILHADAS


 

Taiasmin Ohnmacht

 

Quando todos se foram, ficou a avó. Ficou, não; Luana das Encruzilhadas ficou. Sem escolhas, para avó e neta.

            Sentada à mesa, olhava a cozinha muito limpa; piso, mesa e pia. E a avó que ia e vinha ao redor do fogão. Cheiro de limpeza e de comida, mas Luana não tinha fome, quase nunca tinha.

            A mulher do conselho tutelar falou com sua avó, era a segunda vez. Na primeira vez, a avó se recusou a ficar com eles, a mãe disse que estaria sempre por perto, e o pai, desaparecido, assim permaneceu. A mãe foi a única que mentiu. E bons anos se seguiram. Luana das Encruzilhadas e os irmãos, fim de infância, início de adolescência.

            A avó falava e falava enquanto cozinhava, sempre falava demais, era muito ruído para Luana, fervura, fritura, metal raspando, metal batendo. Luana queria os irmãos, a casa em que viveram, a família que conhecera, a bagunça que era só deles. Queria o meio-fio onde ela e seus dois irmãos sentaram ao se darem conta de que a casa estava vazia e assim ficaria se eles não entrassem nela, e que ninguém os chamaria para dentro.

            Foi na encruzilhada que Luana tomou o primeiro gole. Em uma aposta com a criançada da rua, ela e seus irmãos pegaram a cachaça do santo, sem qualquer hesitação, só não pegaram a comida porque os cachorros chegaram antes.

            Pouco a pouco todos foram partindo, o irmão do meio morto em um assalto, o mais velho, de muda para a casa dos pais da namorada grávida, julgou que a casa das encruzilhadas não era bom lugar para criar filhos.

            Luana vagou por um tempo, becos, ruas, avenidas. Até se trancar em casa com muitas garrafas e a certeza de que tinha tudo o que era preciso. Não havia mais irmãos, não havia mais família.

            Os vizinhos que se mobilizaram anos antes e ajudaram as crianças com comida, não faltaram mais essa vez, mesmo acostumados com o caos da casa da esquina, ver Luana das Encruzilhadas fechando todos os caminhos com seu miúdo corpo ébrio caído, foi demais. Procuraram a mãe, os familiares, o Estado.

Sobrou Luana e as encruzilhadas. E a avó.

            Agora tudo o que Luana queria era apagar um pouco. Sua avó serviu-lhe o almoço, mas a menina apenas deslocava a comida de um lado para o outro enquanto se perguntava se não haveria algo para beber naquela casa tão limpa. Álcool, é claro! O cheiro de limpeza da casa era de pano com álcool.

            Levantou-se da mesa e começou a revirar os armários da avó.

─ A comida aqui é simples, não tem outra coisa.

            Luana não escutou, continuou revirando os armários, procurando álcool de limpeza.

─ Está procurando o quê, menina?

            Alimentos, panelas, pratos.

─ Senta e vem comer.

            Potes com arroz, feijão, açúcar. Saleiro, macarrão, café. Então, Luana escutou:

─ O mesmo desassossego do teu pai.

            Encontrou o vinagre de álcool. Pegou-o e olhou para a avó que lhe devolvia o olhar enquanto mastigava.

─ Eu não fiz salada, amanhã faço. O teu pai também gostava. Senta aqui, vamos almoçar.

            Luana sentou, derramou muito vinagre no prato e, por fim, comeu.

 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

TUDO O QUE HÁ PARA SABER






Taiasmin Ohnmacht

 

O corpo todo dolorido. Depois de três meses ele entendeu; há dores que não passam, mas talvez já soubesse disso.

            As coisas aconteceram, não escolheu, não provocou, mas foi obrigado a colocar um ponto final.

            Paulo olhou as paredes manchadas, restos de reboco e ferros aparentes. Sentado no chão frio e irregular, se viu com a caixa de cimento e a trolha reparando um mundo que desmoronava.

            Cheiro de mofo e suor. Era difícil dormir. Ao começar a adormecer, olhos e a boca carregados de maquiagem surgiam a sua frente. Então acordava e praguejava contra aquela mulher que o torturara. Se pudesse a mataria de novo.

            Uma única vez sonhou com o corpo forte do rapaz, os dois riam de alguma piada em um sonho reconfortante. Acordou assustado, como se os outros sete companheiros da cela soubessem de seus pesadelos. E todos dormiam, e todos sabiam. As dores no corpo voltaram a incomodar.

            No caminho para o pátio, Paulo olhava com indiferença os corredores e os funcionários armados. Ao ser atingido pela intensa luminosidade do espaço entre as galerias, lembrou a última vez que percorreu o caminho de volta do trabalho, com o martelo na mão e ódio suficiente para as dezenove marteladas desferidas na cabeça daquela bruxa. O fraco sol de inverno era incapaz de diminuir o frio em seu corpo.

            Naquele ambiente, ele se sentia exilado do mundo humano, mas também pensava que já vivia em exílio muito tempo antes, controlando olhares e desejos e sentindo o risco constante de ser humilhado. Temor concretizado com a chegada daquela mulher.

Um conjunto de cartas, copas e espadas. Ele conhecia canastra, mas não aquele jogo. Dependia dela e de suas palavras. Não sabia por que fora procurá-la. Todos no bairro falavam de seus poderes. Que poderes ela teria para ele? Já na primeira vez ficou impressionado. Em meio a baforadas de charuto ela falou de seu isolamento, de sua solidão, sem que ele precisasse dizer qualquer palavra. Saiu de lá sentindo ter-se encontrado.

Na cela, Paulo evitava olhar para os outros presos. Não que isso evitasse as surras. Às vezes, evitava as curras. Mas nada o fazia esquecer o rapaz que haviam colocado como seu ajudante na obra. Última lembrança de vida que tinha; os dois compartilhando trabalho, interesses e sexo, em um encontro inédito para ele.

A vida continuou dividida, mas um pouco mais fácil ou mais interessante. Até aquela feiticeira resolver destruí-lo. Em seu itinerário de ida e volta do trabalho ela sempre estava no portão, no início um sorriso enigmático. Um dia o convidou a entrar, falou que ele estava carregado, precisava de um passe. Depois as cartas. Paulo olhou para a boca vermelha e ouviu:

- Você tem uma pessoa especial em sua vida. Um rapaz jovem, moreno...negro.

            Quem havia contado para ela? Aquela mulher era o demônio? Só podia ser uma vaca de uma cigana, uma macumbeira! Confuso, disse que tinha um filho, todos no bairro sabiam que ele tinha um filho. Era perfeitamente crível que o rapaz especial fosse seu filho. Foi embora apressado. Com o passar das horas se acalmou. Pura coincidência. Ela não tinha como saber.

            Paulo lembrou o dia em que chegou preso. Todos sabiam. Ele não fazia ideia de como isso era possível, mas no presídio todos sabiam. A diferença era que ele não se importava mais.

            No início, a macumbeira foi sutil, apenas um pequeno sorriso. Depois, uma frase fora de contexto:

- A tua mulher não te dá o que tu gosta, né? - e deu uma gargalhada de vagabunda.

            Paulo mudou o caminho que fazia para não passar em frente da casa dela, mas moravam na mesma rua, nem sempre era possível evitá-la. Na maior parte das vezes ela não falava nada, o mais comum era um olhar zombeteiro. Apesar disso, vivia tenso, como um condenado a uma desgraça iminente.

- Tu não vem mais aqui? Eu tenho mais algumas coisas pra te dizer. Algumas até acho que tu ia gostar.

Não parou, tentando passar rápido em seu caminho para o trabalho, mas ela continuou:

- Que pressa! Acho que este trabalho está te sugando demais. Tenho que ir lá ver em quem tu tá trabalhando.

            Não suportava mais o deboche e a risada diabólica, mas a partir de então escutou algo mais, uma ameaça. Trabalhou o dia inteiro. Quase não falou com o rapaz. No final do dia, saiu da obra carregando o martelo.

            Paulo olhava as paredes cheias de bolor enquanto uma nova imagem surgia em sua mente. No interlúdio entre os gritos e o próprio choro, nas sessões de terror que vivia, imaginava-se com uma marreta nas paredes decrépitas que o continham.

 


quarta-feira, 19 de abril de 2017

ARRISCAMENTOS





Cuspo tinta azul
Do sexo oral
Com a caneta
O escarro
Desenha letras
E me cobra sentido




Sub Atração

Nem eu
Nem você
Vamos nos ver
Hoje, amanhã
Ou em qualquer tempo
Equação de exclusão
Sobra o vazio
 
 
 
 
Restolho
 
Não te assustes com os obreiros da morte
Enquanto os vermes devoram teu corpo
Teu nome estará sendo dito
Em lamentos
Missas
E alívios
No dia em que restarem só ossos
Nem isso.
 
 
 
 
Palavra é larva que devora a coisa
 
 
 
 
 
 
 
 




sexta-feira, 31 de março de 2017

Escritoras Negras, por Priscila Pasko.

Abaixo, o link da excelente reportagem da jornalista Priscila Pasko, sobre escritoras gaúchas negras.

http://www.nonada.com.br/2017/03/por-que-nao-conhecemos-as-escritoras-negras-gauchas/


E a seguir, a minha participação com o poema Considerações:

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

CRÔNICA DE UM DESEJO



 
Taiasmin Ohnmacht

 

Eu o desejo amante de um amor já perdido. Sou daquelas pessoas que inventam amores e que desejam o desejo.

            Não quero falar dos motivos, nem saberia. Quero dizer que imagino, ao lado dele, um mundo à parte, protegido do cotidiano. Não suporto dias previsíveis, nem vida repetitiva. Quero ser arrebatada por algo incontrolável, que me tire do eixo e me torne outra, porque tem algo em mim que eu mesma não aguento.

 

            Ele deixou visível uma intimidade com a namorada e eu comentei. Sim, fui inconveniente. Sim, me excedi. Sim, quero entrar pelas frestas que há entre os dois e sorver os fluídos que trocam, quero ser ela e ter o melhor dele, quero ser ela e deixar de ser também.

(e aquele que se chama meu marido ignora o meu desejo. Ele pensa que sabe e atende ao que pensa que eu quero. Saberia um pouco mais se me escutasse)

            Espero todos os dias pelas palavras que ele digita, que os seus dedos se acomodem em meu corpo e encham meu corpo/copo de perguntas bobas, de perguntas vazias, de um querer que me tome.

            Essa mania de inventar amores sempre acaba me deixando com um gosto amargo na boca. É bom que eu me lembre: não sou uma opção para ele (nem ele para mim), posso ser um acidente, não uma opção.

            Não conseguimos ser nem amantes, nem amigos. O carinho que temos, o gosto por conversar e as afinidades, são contaminados pela atração. E toda palavra tem mais de um sentido, e lemos os vários sentidos fingindo não ler, e gozamos nossa fingida seriedade e gozamos. Estou intoxicada dele, estou intoxicada com meu desejo. Ao não consumi-lo, consumo a mim.

            Entre conversas e silêncios, vou compondo minha idealização. Todas as conversas com ele são belas, mas às vezes terminamos mais amigos que amantes e não sei se me agrado. Sexo com ele é uma fantasia, talvez unilateral, mas o que mais me encanta é pensar que ele possa me desejar, que eu possa seduzi-lo. De qualquer modo, é possível que exista mais sexo em nossas conversas do que jamais poderia se dar em um encontro físico.

            Agora dei para ter ciúme dele! Não é exatamente de outras mulheres, mas de que ele encontre vida em outro lugar que não seja em mim. Esse é um mal do qual padecem todas as mulheres, sobretudo as apaixonadas.

            Escrevo essas linhas para perverter desencontro em encontro, com o açoite da palavra. Talvez aqui eu tenha o que essencial dele e que só possa ser encontrado em mim.

            Hoje pensei estar livre dele, mas percebi que não, estou apenas longe. Suspeito que ele seja o próprio desejo. Às vezes sei o que ele anda fazendo, outras não. Ele nunca mais me disse estar com saudades e eu me apego a palavras que a barra de rolagem leva adiante. Não, nunca estou indiferente. O meu desejo não está à deriva, mas afrouxado.

 

            Eu me conformo com o dia a dia e com o amor que posso ter. A vida não é grande coisa, nem pra mim nem pra ninguém.

            Não falo em amor, mas em uma certa necessidade de existir para além da vida comum e por isso escrevo. Ninguém pode suprir o meu desejo para o fantástico e, assim, fico o inventando em meu cotidiano.

            Vou enviar para ele todas os poemas que escrevi.

            Eu não tenho o direito. Eu não o tenho direito.

            Então é isso, estamos apartados. Não importam as palavras, ele sabe e eu sei que a escolha foi pelo fim. Não foi surpreendente, foi medíocre. Do jeito que se esperava desde o princípio. Surpreendente seria se tivéssemos nos permitido.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

LÚCIA




 
 
 
Para escutar a música, clique a seguir:

 
 
 
Letra: Taiasmin Ohnmacht
 
Música e voz: Galvão
 

LUCIA

 

Lucia me acusa

Eu me desculpo

Ela me recusa

E eu que nem fiz mal

Só pulei o carnaval

 

Coração duro

E quarto escuro

No silêncio

Nem um sussurro

 

Meu corpo quente

Derrete gelo

Eu espero por um aceno

Do teu corpo moreno

 

Eu posso te aquecer

Até o dia amanhecer

Me chama, Lúcia

Não deixa o desejo morrer.

 

Lucia me acusa

Eu me desculpo

Ela me recusa

Será o ponto final?

De um amor sem igual?