domingo, 15 de maio de 2016

FRONTEIRAS



Taiasmin Ohnmacht

Ainda estou aqui.
            Meu nome é Matheus, mas isso pouco importa, poderia ser Lucas, João ou qualquer outro.
            Não sei se alguém ainda se lembra de mim, mas eu me lembro de tudo e sigo faminto.
            Sentado na rua, olho o movimento de carros e pedestres, toco na calçada e sinto o piso gelado. Amo sentir esse frio. O cheiro de chão é uma mistura de terra, cimento e excrementos de tudo o que é vivo. A vida habita o solo. Quando criança, cavava buracos em busca de minhocas. Hoje há um determinado pedaço de chão no mundo onde, se cavar, vou encontrar minha derradeira face, e ela é a própria morte.
            Ando a esmo pelas ruas, não busco rostos conhecidos, mas quaisquer rostos que me sejam simpáticos e tenham um pouco de calor humano para compartilhar comigo. Mantenho distância dos deprimidos, a morte neles é maior do que em mim. E se o nada neles me aprisionar, me exilar da morte que conheço e me tornar uno com eles, uma massa disforme morta-viva?
            Não. Prefiro o mundo dos loucos que andam por aí acreditando que tudo vai fazer sentido no próximo beijo, na próxima festa, na próxima promoção. Aqueles que acreditam que a vida vai se realizar plena ao fim de cada pai-nosso, de cada aleluia. Credo!
            Estou morto o suficiente para reconhecer a vida. Sei que eles vão seguir por aí alienados, até o momento em que a terra abrir a boca para digerir suas mortes. Mas até lá seus dias estarão abarrotados de sensações e emoções. Os sigo para mais uma vez ver e sentir, pois quando vivia havia as cores intensas e a voz infantil dos meus filhos no quarto ao lado, e a dor da saudade é tudo o que resta sem a ajuda dos vivos.
            Sigo a pessoa por um tempo, respiro com ela, vejo com ela, mas às vezes quero mais. Então enguiço um carro para provocar uma caminhada ao sol, para aproveitar melhor as cores do dia. Atraio cães de rua que nos cheiram e fazem cócegas na pele. Estrago a bateria do celular, derrubo a rede para liberar olhos e ouvidos. Provoco encontros estranhos, paixões prementes. Porque a vida é essa que acontece enquanto se olha para outro lugar.
            Da morte não há nada que mereça ser contado. Apenas muito desejo de vida. Dizem que reencarnação existe. Não sei. Por aqui vejo os mesmos mortos de sempre, nenhum desapareceu sem explicações. E explicação é aquilo que os vivos usam para arrefecer a vida.
            Já fiz a minha escolha: criar alguns obstáculos no cotidiano dos que pulsam e não sabem, para que pulsem um pouco mais. E que eu pulse com eles.

Foto: Renata Stodulski

Tags: conto morto-vivo