É abordada no Bom Fim.
Um homem vesgo e um cartão. A direção da mão dirime a dúvida diante do olhar.
Micail do Nascimento – Socorrologista
Aline
pega o cartão impressionada com as profundas rugas de um rosto mais mal cuidado
do que velho.
- Alguém me odeia. – fala sem perceber
que fala.
- Tudo é relativo.
Aline
é conduzida por Micail até seu consultório. O branco irreal das paredes, piso e
móveis é quebrado por pirâmides douradas, em teto e cantos.
- Tu não pode me ajudar. Eu preciso que
alguém morra. – na voz dela, apenas decepção.
- Eu só faço partos.
Por
já estar lá e não ter opção melhor, ela se deixa deitar no tapete imensamente
branco, a cabeça encaixada em uma estrutura piramidal. Antes de liberá-la, Micail
receita toalha úmida na cabeça e arroz selvagem. Aline fica mais esperançosa,
lembra sua avó lhe dizendo não haver ganho sem sacrifício.
- Dentro de uma semana sua vida será
outra, mas não esqueça; a toalha tem que estar sempre úmida.
Aline
ficou imaginando o que poderia mudar na sua vida se não houvesse uma morte. Por
via das dúvidas e a despeito dos olhares curiosos, passou a usar a toalha
molhada como gorro. Difícil mesmo foi o arroz. O intestino começou a funcionar
com regularidade, mas isso não chegou a mudar sua vida.
Após
o terceiro dia de tratamento, ganhou um passeio de monomotor sobre o Guaíba.
Sorteio de um galeto paroquial ao qual nunca foi. Contente, passou a umedecer
ainda mais a toalha.
Emocionada
com o primeiro voo de sua vida, nem percebeu quando o único motor parou de
funcionar. O piloto agitado começou a gritar. Quando Aline entendeu o que
estava acontecendo, olhou para o rosto apavorado de seu condutor, lembrou de
Micail e o amaldiçoou. Resolveu pular do monomotor, só para ter o prazer de
fazer a última escolha da vida. Em sua queda, foi subitamente puxada para cima.
Havia um paraquedas em sua cabeça. E ele estava seco. Pousou os pés no chão com
delicadeza, mas aí já era outra. E no solo saiu andando Renata.