sexta-feira, 24 de maio de 2013

Trocando em Miúdos


 
            Tudo o que aquele rapaz fazia tinha um tom poético. Com a voz perfeitamente afinada, grave e suave, ele transformava cada canção em uma declaração de amor. Às vezes, Raquel se emocionava, mas procurava não demonstrar, mantendo a postura de professora de violão e canto. O mínimo de dignidade, pensava. No entanto, seu olhar enamorado percorria os dedos longos e delicados dele, a curvatura de suas costas, enquanto segurava o violão, os olhos pequenos e semicerrados, cantando com prazer uma música de Noel Rosa. Raquel pegou o violão para mostrar a ele um acorde e viu a aliança em seu próprio dedo. Símbolo de uma união. A aliança fazia com que a atração por Tiago parecesse patética. Era Raul quem ela encontraria quando chegasse em casa, era com ele que dividia o cotidiano. O rapaz, a quem ela sorvia com os olhos, tinha apenas vinte anos e era cheio de vida! E a vida que vivo agora? Pensou Raquel.

            Uma vida de silêncios. Eles faziam percursos semelhantes pelos cômodos da casa, mas em mundos paralelos. Raros encontros. Aos quarentas e três anos, Raquel nada mais sabia sobre sua feminilidade. Raul não a confirmava, nem em olhares, nem em desejo. O sexo era uma burocracia mensal. Todos os movimentos previsíveis. Muito diferente de quando se conheceram. Ela estava terminando a faculdade de música e ele era um recém-formado em contabilidade. A maior afinidade que tinham era o desejo urgente de ficarem juntos. Quando haviam se perdido?

            Agora, mesmo contra sua vontade, insistia em encontrar seu desejo em um corpo que acabava de sair da adolescência. Com Tiago, encontrava afinidades musicais, Toquinho, Paulinho da Viola, Chico Buarque. Ele ainda gostava de música clássica e estudava sociologia, segundo interesse de Raquel, depois da música. Enquanto Tiago cantava Dindi, de Tom Jobim, Raquel pensava que era tudo ideal demais. A vida não era assim. A realidade eram as contas a pagar e a imensa dívida de mais de uma década de relacionamento com Raul. É claro que o marido tinha suas qualidades. Ele era muito carinhoso, bem humorado e a apoiava em suas iniciativas. Mas, de repente, a vida se tornara previsível demais. Paixão não combinava com o cotidiano.

            Raquel foi despertada de seus pensamentos com o toque de um celular. Tiago largou o violão prontamente para atender a ligação. Ele saiu da sala e, alguns minutos depois, retornou. Ruborizado, fechou a porta e gritou:

- Yes!

Olhou para Raquel sem jeito. Empolgado, esquecera de sua presença.

- Desculpe, eu esperei muito por esse telefonema. Pensei que ela não fosse mais me ligar.

            Raquel compreendeu. Lembrou que já teve vinte anos e que não tinha mais. Sorriu para aquele rapaz encantador, mas que não cantava para ela. Não sentiu ciúmes, mas uma ponta de inveja, da moça e de Tiago. Levantou-se e começou a guardar seu violão. Em sua cabeça, Chico Buarque cantava Trocando em Miúdos. Raquel olhou o relógio, estava na hora de ir para casa.

 

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